segunda-feira, 4 de setembro de 2017

A RENASCENÇA E OS LUSÍADAS

Por Ramalho Ortigão 
(Da edição de Os Lusíadas feita em 1880 pelo Gabinete Português de Literatura)  
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                    Do fundo tenebroso da Idade Média tinham saído os três fatos  fundamentais da civilização moderna: - A bússola, a imprensa e a pólvora. 
                O emprego da pólvora nas armas de fogo destitui a cavalaria suprimindo pelo tipo de bala a distância que separava a força do paladino coberto de aço da fraqueza da vilanagem leprosa, alquebrada pela fome e semi-nua.
                A bússola, determinando um ponto fixo e variável através do espaço, habilita o mareante a orientar-se nas solidões do oceano e ministra ao homem pelas viagens marítimas a posse completa do globo e a compreensão do universo, até então circunscritos, um e outro, pela teoria geocêntrica e pela lenda do Mar Tenebroso. 
                 A imprensa, soltando as idéias como um enxame luminoso e alado, preenche o mundo com uma claridade nova, e a esse fiat-lux dissipam-se para sempre as trevas da razão encarcerada na dialética sacerdotal. 
                 Da plenitude gloriosa que vem ao espírito humano dessa tríplice conquista procede essa enorme festa - a Renascença. 
                  Ao feudalismo medieval que ia suceder a monarquia sem limites. Simplificação vantajosa, porque em vez de milhares de forças e de pelourinhos  a distritos a cada senhorio, haveria uma força só à porta de El-Rei, nosso único senhor; em vez de bocas sofregas e vorazes sobre a eira, sobre os celeiros, sobre as arcas do vilão, aparecia apenas no horizonte varrido, ao longe, a mandíbula cavernosa, bocejante, profunda, mas solitária, da realeza absoluta.
                Convém não ponderar com rigor excessivo as diferenças de bem estar que caracterizam no progresso a transição duma idade que se extingue para uma idade que começa. O povo do século XVI como convalescente duma grande enfermidade, contentava-se com pouco para se locupletar na simples felicidade de viver. O povo chegava de muito longe, encanecido, macerado, faminto, meio tonto, como duma dessas longas e ásperas viagens em que se perde inteiramente o alento da luta e a esperança da volta. Ele vinha das fomes terríveis antropófagas, as mais horrendas que a humanidade padeceu desde o Império Romano.Vinha das guerras em que era uso queimar as vilas conquistadas e arrancar os olhos aos inimigos prisioneiros. Vinha das pestes devastadoras periódicas que de cinco em cinco anos sucediam às fomes e juncavam de cadáveres - hosana tremenda e lúgubre - os caminhos que conduziam os peregrinos das cidades, das vilas e das aldeias devastadas aos santuários em que se guardavam as relíquias dos santos célebres. Vinha de um clero composto daqueles bispos, de quem o próprio papa Gregório VII escrevia, que em todo o reino da França se poderia apenas encontrar um que não mereesse ser destituído pelo escândalo da sua nomeação ou pelo escândalo da sua vida, duma família em que a beleza era um pecado e a graça uma blasfêmia; a maternidade considerava-se uma forma de expiação; a mãe de Deus figurava nos altares, não como mãe, mas como  virgem; o filho era o ser condenado pela culpa original. O povo vinha ainda do terror do milênio, o cataclismo anunciado e previsto, em que a Europa se preparara para acabar com extensas procissões de penitência,gemendo e chorando, as faces cobertas pelo capuz negro dos farricocos, no delírio das visões sepulcrais. Vinha das ladainhas, dos jejuns, das flagelações da carne nas convivências místicas dum Deus desfalecido, imberbe, pregado na cruz, escorrendo lágrimas e sangue, um Deus agonizante e moribundo, um Deus de morte, bem diverso, como diz Michelet, do Ormuzd dos persas, do Jeová do judeus, do Júpiter dos gregos, deuses de barbas duras e espessas, amantes fogosos na natureza ou promotores enérgicos das atividades do homem. Vinha também da ciência esmagada nos trabalhos do judeu e do árabe, oficialmente mantida na Universidade de Paris, da qual no século XIII saíram muitos bispos, muitos cardeais e sete papas, e onde a corrupção moral tinha o seu foco na aliança da teologia com a prostituição - in una et eadem domo scholoe erant superius, prostibula inferius... merectrices publicoe ubique cleros transeuntes quasi per violentiam  pertrahebant. Vinha dos traços e das deformações da escolástica,  esse circo da ginática palavrosa. Vinha dos bruxedos e das feiticeiras. Vinha finalmente da desistência dos seus direitos comunais e da sujeição espontânea a reis que saíam a roubar às estradas com Filipe I na França; que faziam dinheiro falso como Filipe o Belo, Carlos IV e muitos outros; que eram parricidas como, nas familias do Anjo e da Normandia, os filhos de Guilherme o Conquistador e de Enrique IV; que violaram crianças, como Henrique II da Inglaterra; que assassinavam prisioneiros e roubavam náufragos como Carlos, conde de Provença, rei de Nápoles, da Sicília e de Jerusalém; que eram finalmente doidos ou ébrios com Wenceslau, filho de Carlos IV, como Ricardo II, como Pedro de Castela. 
                 No princípio do século XVI os reis, com exceção de Carlos V - Sorumbático, - padecendo de gota, - eram alegres, moços, pródigos, propensos à boa vida, aos prazeres ruidosos e festivos.  Henrique VIII, com tendência para criar ventre aos vinte e cinco anos, deixando-se levar pelas facecias do cardeal Wolsev, gostava principalmente de grandes caçadas e de boas farsas; um dia aparece de surpresa, acompanhado de treze fidalgos vestidos de pastores com estofos de cetim carmesim e ouro para jantar em casa do cardeal, que serve ao rei e aos seus companheiros de folia um banquete de duzentos manjares diversos e preciosos. De uma vez em Kenilworth as festas duram dezenove dias consecutivos. Mais tarde  as representações teatrais, os quadros mitológicos, as operas, os torneios, as procissões, as mascaradas em honra de Elizabeth e de Jacques I não tem conta. A Inglaterra grave e sisuda chama-se nesse tempo a alegre Inglaterra - Merry England.
                 Na França, Francisco I, cuja magnificência se tornoutão célebre na entrevista com Henrique VIII no Camp du drap d'or em Calais, sobe o desce as margens do Loire em excursões cinegéticas, batendo as coutadas, galopando por entre as florestas, jantando na relva em Quermesses formidáveis,  onde a comezana duma fartura flamenga põe em veia divertida a jovialidade gaulesa. 
                 Em Portugal D. Manuel, tendo contraído com as riquezas da Índia os gostos burgueses de mercador ostentoso, veste-se em cada dia com uma roupa nova, não come senão ao som das trombetas e charamelas e envia a Roma a embaixada célebre com o elefante do Ceilão coberto de xairéis  preciosos carregando o cofre em que vai encerrado o pontifical oferecido ao papa, com o cavalo persa montado pelo caçador de Ormuz, levando na garupa a onça domesticada;  mais os leopardos, mas os fidalgos vestidos de eludo e de rendas, cobertos de rubis e de aljofares nos gibões, nos chapéus e nos jaezes dos cavalos, mais os besteiros e os azeméis vestidos de seda,  conduzindo à rédea trezentas bestas; - finalmente uma vaga de ouro, de plumas, de brilhantes, de pérolas. atravessando a cidade eterna em uma pompa enorme, da qual os costumes contemporâneos permitem apenas dar ideia nos simulacros da cenografia.
                  Em Roma o próprio papa tinha a carne alegre dos sensualistas espirituosos. Leão X, da família dos Médicis, era um farsista folgazão e libertino. Assassinou de uma vez o cardeal Petrucci e gostava um pouco demais das histórias obscenas  e das comédias licenciosas, mas amava a arte e as letras. É amigo de Castiglione, do Aretino, de Rabelais. Do cofre das indulgências que vendia, como vendia os chapéus dos cardeais, pede que lhe deem 147 ducados de ouro para comprar o manuscrito do livro 33 de Tito Lívio; e quando das termas do Tido foi desenterrado o grupo Laocoonte, ele manda repicar os sinos de todas as igrejas de Roma. 
                 Nesta hora re revivescência geral um raio de sol enxuga as lágrimas vertidas pela humanidade em três séculos de superstições, de terror e de miséria. Um sorriso de bondade paira por um momento no ar. 
                 Com as novas formas sociais transformam-se rapidamente as condições da vida e os aspectos exteriores da existência. 
                 Com as viagens, com os descobrimentos, com as conquistas, estabeleceu-se o comércio e desenvolve-se a indústria. As artes ornamentais, as artes decorativas, as artes de luxo tomam um rápido incremento. 
                 Com as formas góticas acasteladas da casa feudal modificam-se as mobílias e as alfaias domésticas. Aos contrafortes e às pontes levadiças dos séculos anteriores sucedem-se os pórticos e os vestíbulos venezianos. Nascem os ornatos minuciosos de uma variedade caprichosa e delicada na arquitetura; e, dentro das casas, vulgarizam-se os grandes leitos de colunas e baldaquino, os bufês, as credências, os formosos armários esculpidos ou marchetados, que vem substituir os catres duros, os bancos de linhas ogivais e as grandes arcas da Idade Média, recamadas de ferragem, boas para arrecadar os pesados morriões e os arneses chapeados. 
                O largo e longo montante de homens de guerra é destituído pelas espada fina e leve dos cortesões. Os homens despem as pesadas armaduras de barões feudais, para se vestirem segundo as modas italianas, espanholas, francesas, de veludo e cetim, camisas de renda, sapatos bordados a ouro, e longa pluma no chapéu mole pespontado de pérolas. 
                Já não né o jogral que vai de castelo em castelo, cantar as lendas dos amores desgraçados e a história das peregrinações longínquas. Nas cortes dos novos reis são os cortesões, os cavaleiros, os fidalgos que, além das prendas de voltear a cavalo, de jogar lanças e canas ou de correr touros, se prezam de possuir o talento de trocar igualmente bem uma estocada com um homem e uma glosa com uma dama. 
                As ruas aplanam-se e alargam-se para deixarem rodar as primeira carruagens. As casas agasalham-se revestindo as janelas de caixilhos envidraçados.  Nas camas, os travesseiros de um toro de madeira são substituídos pelas almofadas, e nos utensílios domésticos principia a empregar-se o estanho e a prata. O desenvolvimento do fabrico das lãs modifica confortavelmente o vestuário e enriquece a alimentação pela abundância dos rebanhos.
                As mulheres, que no tempo do amor de Petrarca tinham apenas, como Laura, uma ou duas camisas, e que nas bodas do conde Flandres com a filha do duque de Brabante traziam ainda à cinta duas adagas e na cabeça enorme mitras, terminando um bico ou bipartidas em chifres, cultivam com esmero os requintes do vestuário; as rendas preciosas elevam-se com golas de brocado a toda a altura das cabeças; os corpetes são constelados de pedras preciosas. No guarda-roupa da rainha Elizabeth encontram-se três mil vestidos. 
                A humanidade parece retomar subitamente posse dos sentidos atrofiados no misticismo enervante e no dogmatismo absoluto da Igreja, e emergindo da vida com um deleite vitorioso, com uma sensualidade triunfal, a humanidade goza ávidamente, abundantemente. 
                Do grupo da antiguidade grega e romana, pela criação do livro impresso, pela vulgarização das obras clássicas, o homem retempera-se no espírito panteísta, e, reabrindo os olhos para a grande natureza de que estivera apartado por séculos, recomeça a compreender a vida, a interrogá-la, não já no dogma imposto pela revelação, mas no fenômeno diretamente observado; principia a amar a beleza, a estimar a força, e a sentir em si mesmo, na profundidade do seu ser, a palpitação dessas novas energias que vão reconstituir o mundo moral e que se chamam o amor, a paixão, o entusiasmo, o desinteresse, o delicado gozo da arte e a estimulante curiosidade da ciência. 
                 A evolução retrospectiva para a antiguidade sábia inunda os espíritos com clarões inesperados. A velha religião politeísta dá o exemplo de uma tolerância ingenuamente bondosa e magnânima; o Panteon romano recolhe todos os deuses, incluindo os dos vencidos; Atenas adora todas as divindades, até as desconhecidas, para que lhe não esqueça nenhuma; e, se os imperadores perseguem os cristãos, é porque eles atentam não contra as crenças do povo, mas contra a segurança do Estado. A velha poesia rediviva cessa de falar das flagelações e das penitências dos santos ascetas, emagrecidos e chagosos, preparando-se para a morte numa vida de lágrimas, de açoites, de preces e de imundícia. A arte ressuscitada celebra o homem forte, são,   vigoroso e bom, a carne firme e a terra dadivosa e amiga, onde as douradas abelhas de Lucrécio zumbem ao sol sobre as vinhas maduras de Virgílio. Os heróis das antigas legendas são bravos e ingênuos, violentos e doces. 
                Na Ilíada é o furioso Aquiles, vestindo as armas e saindo da tenda em que obstinadamente se encerrara para cumprir o mais humano e o mais trono dos deveres, - para vingar a morte do seu amigo Patrocolo, jogando aos cães o cadáver de Heitor. 
                 Na Eneida é o piedoso herói partindo de Tróia com a espada em punho, seguido de sua mulher Creusa, levando aos ombros o seu velho pai Anchises e pela mão o seu filho Ascânio.
                 Na obra de Eschilo é Prometeu sacrificando-se pela humanidade, dando-lhe o fogo, ensinando-lhe as artes, e, depois de acorrentado ao rochedo no alto da montanha, lentamente devorado pelos abutres em satisfação do castigo mandado por Júpiter, arrostando face a face, inflexivelmente, com a própria divindade, - firme na consciência do dever cumprido perante os homens. 
                Em Sófocles é Teceu estabelecendo o princípio da fraternidade e da solidariedade humana ao receber o infeliz Édipo com esta frase: "Nunca recusarei socorrer um estrangeiro desgraçado; sei que sou como tu um homem."  
                É em Aristófanes o próprio poeta lastimando no teatro diante do povo de Atenas a morte de Fídias, acusado de impiedade, e dizendo que com ele morrerá a paz, tão bela pela sua aliança com a arte em que era mestre o grande escultor. 
                E os autores dessas obras imortais, brasão eterno do gênio do homem, não eram pacientes monges solitários, foragidos da convivência das gentes e soterrados vivos no interior das suas celas entre os manuscritos das revelações divinas e das metafísicas aristotélicas; eram cidadãos que discutiam nas assembleias e nas praças públicas os interesses da República; que se batiam nas batalhas como Eschilo ou nos jogos do circo como Eurípedes; que perante os triunfos da pátria dançavam em torno dos troféus da vitória em corpo nu e perfumado, como Sófocles depois da batalha de Salamina. 
               Ao passo que a poesia despertava essas nobres e soberbas aspirações, a escultura pagã, desenterrada dos esconderijos a que condenara a Igreja, revelava a graça e a expressão da linha dos mármores do Pártenon e do Fórum, nas formas perfeitas dos deuses, das ninfas, dos gladiadores e dos atletas. 
                Na ciência dava-se um igual impulso à renovação mental com a medicina de Hipócrates, com a geografia de Estrabão e de Ptolomeu, com a botânica de Dioscorido, com a filosofia de Platão. 
                Um grande número de editores de Parma, em Veneza, em Florença, em Leipzig, em Koenigsberg, na Itália, na Alemanha, na Suíça, multiplicam os exemplares de estudo e facilitam a circulação literária, abandonando o infólio e adotando o formato em 8°, introduzido por Alde em 1500. 
                O latim clássico dos oradores, dos poetas, dos historiadores, dos naturalistas, limpa por toda a parte o latim bárbaro dos monges. 
                As línguas sábias, não somente a latina, mas a grega e ainda a hebraica, são lida e faladas, em todas as escolas e em todas as cortes em que se presa a cultura da inteligência, pelos homens e pelas mulheres, para quem a erudição clássica se considera um característico da fidalguia. 
                 Na Inglaterra, a duquesa de Norfolk, a condessa de Arundel, Joana Grey conversam em latim, analisam Cicero e discutem Platão.  
                 Na França, Francisco I humilhado na sua ignorância, encarrega um mestre de lhe ensinar rapidamente, dentro de um mês, o latim e o grego; funda o Colégio de França, onde essas duas línguas, assim como o hebraico, se ensinam gratuitamente; e inspirado da Paixam de Petrarca, manda restaurar em Avinhão o túmulo de Laura, e põe ele mesmo em versos, ainda que maus, a história dos seus amores e do seu cativeiro. 
                 Na Itália todas as cortes, Ferrara, Milão, Mântua, Bolonha, pleiteiam entre si a glória de proteger as letras.  Os Médicis, mercadores, literatos, artistas, favorecem igualmente a navegação, os trabalhos filosóficos e os monumentos de arte. Em Florença e em Piza, a biblioteca médico-laurentina é fundada por iniciativa de Cosme e de Lourenço o Magnífico. Funda-se igualmente a Academia da Crusca e  restaura-se a universidade de Pávia. A lingua grega é ensinada em Florença e em outras cidades, onde a presença de vários sábios bizantinos facilita à Europa os estudos do helenismo. 
                 Na Espanha é certo que Fernando de Castela sabe apenas assinar o seu nome, mas a rainha Isabel lê corretamente os autores latinos. 
                 Margarida da Áustria e Margarida de York, as primeiras preceptoras de Carlos V, tem com ele a mais esmerada educação literária. 
                Os administradores da Suécia, no último quarteirão do século XV, fundam a universidade de Upsala ao mesmo tempo que o rei da Dinamarca institui a universidade de Copenhague.
                Na Rússia Ivan III convida e retem violentamente, dentro dos seus domínios, os artistas gregos e italianos. 
                Na Hungria, Matias Corvino, ao mesmo tempo que bate com a sua guarda negra os janízaros de Maomé II, funda uma universidade, duas academias, uma grande biblioteca, um museu e um observatório. 
                Na Alemanha, desde 1409 até 1538, fundam-se treze universidades, sendo a primeira a de Leipsig e a última a de Estrasburgo. Muitas escolas de menor importância a várias congregações científicas, como a sociedade Rhenana e a sociedade de Estrasburgo, estabelecem-se para fundar o humanismo. Os professores e os sábios comunicam-se, viajam, empregam todos os meios de ampliar a sua esfera de ação e, tendo à frente desse movimento Erasmo, o sarcástico demolidor, despossam o clero do monopólio das letras. 
                Fundada em tais alicerces, a Renascença toma rapidamente o caráter de um fato literário, e de um fato artístico assombroso e incomparável. 
                Homens verdadeiramente extraordinários e capitães como nunca mais a história tornou a ver reunidos, haviam nascido sucessivamente como preparação da nova mentalidade. E Colombo em 1436, Leonardo Da Vinci em 1452, Erasmo em 1467, Copérnico em 1473, Miguel Ângelo em 1472, Lutero em 1483, Rabelais em 1495. 
                O novo mundo descoberto por Colombo, além das contribuições científicas trazidas à astronomia, à botânica, à zoologia, a todas as ciências da natureza, transforma as condições econômicas e domésticas da sociedade européia pela importação dos metais preciosos e dos novos produtos alimentícios, pela introdução do açúcar, do tabaco, da batata, do café. 
                Leonardo Da Vinci, matemático, físico, engenheiro, escultor, pintor, literato, poeta, moralista, músico, é a mais poderosa imagem do enciclopedismo, que foi a alma da Renascença, assim como mais tarde devia ser a base da moderna filosofia. Leonardo Da Vinci é principal inciador dos progressos do espírito no seu século. Ele foi, em maior ou menor escala, o mestre de Miguel Ângelo, de Rafael, de Corréggio, de galileu, de Kepler, de Copérnico. 
               Pinta aCeia e a Jacunda; reúne o canal de Marfetana e o de Tessim; talha a estátua equestre de Sforza; anuncia os mais importantes fatos da astronomia, da geologia, da mecânica, e prevê p termômetro, o barômetro e a máquina de vapor. 
               A obra de Erasmo morreu cedo porque lhe faltavam os dois principais elementos que fazem viver os livros na estima dos povos, - primeiro: o culto nacional da língua; segundo: o cunho que imprime no produto artístico a superioridade pessoal do autor. Erasmo escrevia numa língua neutra - o latim, e tinha o coração duro, inacessível aos grandes entusiasmos desinteressados e às nossas compaixões incondicionais e absolutas. Pequeno e débil do corpoe da alma, e educado no convento, conservou em toda a sua vida a timidez do seminarista e o egoísmo do valetudinário. O seu ódio à demagogia é um reflexo da sua indiferença pela sorte dos oprimidos. A posteridade puniu-o com o desdém. No seu tempo, porém, a obra de Erasmo, tão, tão volumosa como a de Voltaire, teve uma influência benéfica e decisiva na formação e na educação dos espíritos. Pelo livro intitulado Os adágios, em que ele coligiu e comentou os provérbios latinos, gregos e hebraicos, Erasmo funda as bases das literaturas modernas na tradição e no bom senso popular. Pelas suas obras de educação, de crítica, de controvérsia religiosa e de polêmica literária, pela publicação da suas gramáticas, dos seus dicionários, das suas traduções, dos seus tratado, pelo Elogio da Loucura e pelos Colóquios, que saiam à luz disgregadamente  e sucessivamente à maneira de uma revista periódica, Erasmo, trabalhador assombroso, contribuía mais que ninguém para espalhar ideias, para vulgarizar noções, para suscitar teorias, para alargar finalmente os domínios da inteligência e para fundar a independência intelectual e a liberdade de pensamento. 
               Lutero é ao mesmo tempo o cataclismo destruidor do velho mundo pensante e a célula primeira do novo organismo social. Queimando publicamente em Wittemberg a bula papal que o condenava, refutando a tradição e o princípio da autoridade, os jejuns, o purgatório, os votos monásticos, o celibato eclesiástico, que era uma amputação, as indulgências, que eram uma mancomunação no crime para a venda do perdão.  Lutero destrói, num ímpeto de rebeldia sacrílega todas as crenças que constituíam a alma da Idade Média. Derrubando os tribunais eclesiásticos, prepara a distinção do poder civil e do poder religioso. Desobedecendo e revoltando-se com uma irreverência heroica, funda a liberdade do pensamento e abre pela livre investigação e pelo livre exame o caminho da ciência. No seu lar doméstico, na convivência da sua mulher e dos seus filhos, no seu jardim, que ele próprio agriculta, à sua mesa ridente e hospitaleira, onde ele ergue cantando a grande taça da amizade transbordando o vinho, esse poderoso temperamento de combate e de vitória, tão expressivamente acusado nos retratos feitos por Holbein e por Granacho, - com a boca cheia de força e de riso, com os olhos penetrantes, com um pescoço bovino, com bíceps atléticos, - dá pela primeira vez ao mundo o exemplo da alegria raciocinada e convicta do homem são. Pela sua maneira de tratar os papas e os reis, todos os grandes e todos os poderosos, ele estabelece para os humildes esta força nova - sem cerimônia. Pela sua destreza em manejar a verdade, cria uma religião. Pela sua profundidade em interrogar os corações que padecem, ele presta à humanidade um maior serviço que o de dar-lhe uma nova seita; dá-lhe uma nova arte. A música moderna foi ele que a criou. Até então o homem em comunidade sabia apenas rezar. Quem primeiro nos ensinou o canto foi Lutero. Os seus hinos, inspirados nas mais ingênuas canções do povo, tem a larga vibração elegíaca e profunda de um grito supremo da humanidade. Na alma popular essa música opera como o bálsamo da consolação infinita.  Na Holanda, quando ao levantar-se o cerco de Leyden pelo duque de Alva, o povo se reúne no templo para entoar o coral de Lutero, a grande multidão dilacerada pelas resistências do assédio e pelas devastações da fome, esquece-se da sua própria dor perante a sublime e dominante majestade do cântico que a exprime, e a comoção é tão profunda que, ao cado dos primeiros compassos as vozes não podem continuar e hino, e, entrecortada de soluços há uma pausa solene, em que, para glória da arte, as doces lágrimas da poesia borbulhando nos corações cicatrizam a chaga aberta pelas lágrimas corrosivas da desgraça. Um dos primeiros mestres da música moderna - Meyerbeer - ressuscitou-os na sua obra, os hinos de Lutero.  Todos que ouvimos o grande coral de Huguenotes e o coro do terceiro ato do Profeta sabemos oque se deve em gratidão a Lutero artista, como consolador benéfico das magoas do nosso coração e como suscitador fecundo das energias do nosso cérebro. 
                 A alegria, essa grande força da alma que Michelet considera a quarta virtude divina, que faltou aos santos taciturnos do catolicismo, tornando-os assim defeituosos e bastardos, igualmente incompatíveis com a agremiação dos homens e com a parceria dos anjos, a alegria, de que Lutero é a expressão pessoal, toma em Rebelais a forma épica. Sem a alegria a humanidade não compreende a simpatia nem o amor. Para estimar os santos do cristianismo o povo empresta-lhes a alegria que eles não tem, e faz do soturno asceta S. João o bom farsista amigo dos namorados, ajudando-o a quebrar bilhas e a furtar beijos às lindas raparigas que vão à fonte. 
                 Entre os nossos voos espirituais, Lutero foi o primeiro contente que cantou, Rabelais foi o primeiro contente que riu de todo o riso truncado através da Idade Média nos fabliaux  e nos vilhancicos, e, ao ribombo formidável da gargalhada de Pantagruel, estremesse desencasando-se dos gonzos a velha caixilharia de todo o edifício social.  Rabelais ri, porque se tem a fé na ciência que aprendeu, como médico, com Hipócrates e Galeno, como humanista, com Sócrates e Platão; porque tem caridade manifesta do seu amor dos pequenos e na sua aversão aos tiranos; porque tem a esperança posta no progresso acelerado pela sua própria obra, da qual ele mesmo diz: - bon espoir y git au fond. O que distingue Rabelais  de Aristófanes é, como nota Littré que o cômico da Grécia assim como Tácito em Roma, previa a próxima invasão dos bárbaros e a ruína de um mundo condenado; por essa razão Aristófanes, não vendo no futuro senão o aniquilamento social, defende obstinadamente o passado contra as inovações temerárias de Sócrates. Rabelais, pelo contrário, sente palpitar em si a alma da Renascença, presente no mundo novo, e, zombando de tudo, só não zomba da filosofia porque antevê nos triunfos da ciência o futuro resgate do homem. Pelo seu poder demolidor porque as risadas rabelaisianas soam em torno de todas as velhas superstições, como as trombetas de Josué em volta dos muros de Jericó - Rabelais é o precursor da Revolução Francesa. Pela sua sistematização filosófica, pelo seu plano de estudos na educação de Pantagruel, na qual os conhecimentos biológicos aparecem pela primeira vez, ha trezentos anos! como a base da ciência política, Rabelais é o precursor do positivismo na parte mais indiscutida do sistema de Comte; a determinação do método pela classificação genealógica das ciências. A reforma religiosa não produziu senão desunião e discórdia na família humana. A reforma filosófica de Rabelais, se houvesse sido compreendida, teria eliminado o luteranismo e calvinismo, teria suprimido as guerras religiosas e fundado a concórdia humana na tolerância e  na justiça. Com todos os semeadores de grandes idéias, Rabelais não pode ver frutificar a sua obra, mas a semente da reconstituição filosófica do mundo moderno estava lançada à terra desde que fora concebida e epopeia pantagruélica. 
                  A tão poderosos elementos de renovação moral e de renovação artística, a influência de Miguel Ângelo, de Corréggio  e de Rafael acrescenta três poderes novos. Rafaerl ensina a exprimir a beleza; Corrégio a graça; Miguel Ângelo a força. 
                 O movimento artístico toma as mais grandiosas proporções. Levanta-se a basílica de São Pedro. Pinta-se a capela Sistinae pintam-se as estâncias do Vaticano. Principia-se o Louvre e as Tulherias. Edificam-se, na França, ps palácios de Saint-Germain, de de Fontainebleau e de Chambord. Controem-se em Florença o palácio Pitti; e em Gênova, e em Veneza abrem-se os suntuosos vestíbulos e erguem-se os elegantes pórticos do novo estilo.  Ghiberti cinzela na França as portas de bronze do Batistério de S. João, a mais admirável obra da escultura  moderna. Donatelo levanta a estátua de S. Marcos. Luca della Róbia inventa as terre cotte. Finiguerra acha a gravura em cobre. Ticiano, o príncipe dos coloristas, eleva a pintura do retrato a um esplendor que nunca mais se excedeu.  Alberto Durer e Raimondi põem em voga a gravura. Benvenuto Cellini funda a ourivesaria artística. Em Veneza aparecem Tintureto e Paulo Veronez, em Florença André del Sarto, em Roma Júlio Romano, na Holanda Rubens, na Alemanha Holbein.  Na música nasce Luis Seufl, amigo e condiscípulo de Lutero, e Palestrina, o criador do canto fermo; na Antuérpia fabrica-se o primeiro cravo de quatro oitavas com duas cordas para cada nota, ao passo que a antiga viola dos menestréis, por meio do apenso de uma nova corda, se converte na rebeca, principal instrumento das orquestras modernas. 
                 Na ciência, Tartáglia e Ferrari descobrem novas fórmulas para resolver as equações do terceiro e do quatro grau. Viète aplica pela primeira vez a álgebra à geometria. Copérnico e Kepler estabelecem as verdadeiras leis do sistema do mundo, e juntamente com Sturn e Campanella destroem pelos fundamentos a autoridade de Aristóteles. Vesale e Servet criam a anatomia humana e fazem dela a base da medicina e da cirurgia. Machiavel empreende a história crítica da política. Montaigne metodiza a dúvida convertendo-a num dos mais fortes instrumentos de verdade, e dá o primeiro exemplo da indiferença religiosa, penhor da pacificação das consciências pela filosofia. 
                 O direito romano, ressuscitado pelos juristas franceses, inglêses e italianos, regulariza a legislação européia e opõe a liberdade civil da antiga Roma à tirania religiosa da Roma pontifícia. 
                 A filosofia de Platão, substituindo a dos peripatéticos pelos estudos da Mirandola, de Paracelso, de Fludd, de Zorzi, produz um maior benefício que o de aliar a tradição cristã com o espírito da antiguidade. O neoplatonismo fecunda a poesia renovando-a inteiramente pela análise psicológica, dando ao poeta a faculdade de especular com as próprias comoções e criando a arte lírica por esse poder de subjetividade que produziu a obra de Petrarca e inspirou Goethe o conhecido aforismo: Se a tua dor te aflige faze dela um poema. 


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BIOGRAFIA 
                 José Duarte Ramalho Ortigão, escritor e crítico português, nasceu no Porto em 1837 oriundo duma família nobre do Algarve. Quando acabou os seus estudos dedicou-se ao magistério e entrou para a redação do Jornal do Porto, onde teve as seções noticiosa e do folhetim.  Nomeado em 1869 oficial da Secretaria da Academia Real das ciências, nesse ano veio para Lisboa fazendo parte dos juris de exame nos liceus. Colaborou em vários jornais do país e do Brasil; em 1871 fundou com Eça de Queiroz as Farpas cronicas mensais de crítica, endo escrito ainda com o mesmo escritor Mistério da Estrada de Cintra Para o Diário de Notícias, artigos que fizeram uma grande impressão por se julgar, a princípio, que se tratava dum caso real. Entre várias obras que publicou, devem citar-se: Literatura de hoje, 1866; Em Paris, 1868; Histórias cor de Rosa, 1870; Notas de viagem, 1878; As Praias de Portugal, 1876; A Instrução Secundária na Câmara dos Senhores Deputados, 1883; A Holanda, 1885; etc.  Das Farpas só os primeiros 15  números pertencem aos dois escritores; os restantes foram todos escritos por Ramalho.  Do Mistério da estrada de Cintra fizeram-se duas edições, uma e, 1871 e a outra em 1885. 
Nicéas Romeo Zanchett. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A ARTE - (De O Riso)

Henrique Bergson 
                  
                 Qual é o objetivo da arte? Se a realidade viesse impressionar diretamente os nossos sentidos e a nossa consciência, se pudéssemos entrar  em comunicação imediata com as coisas e conosco mesmos, creio bem que a arte seria inútil, ou antes que nós seríamos artistas, porque a nossa alma vibrará então continuamente em uníssono com a natureza. Os nossos olhos, auxiliados pela nossa memória, recortariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. O nosso olhar aprenderia na passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátua, tão belos como os da estatuaria antiga. Ouviríamos cantar no fundo das nossas almas, como uma música algumas vezes alegres, a maior parte das vezes melancólica, sempre original, a melodia ininterrupta da nossa vida interior.  Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está em nós, e todavia, nada de tudo isso é o apercebido por nós distintamente. Entre a natureza e nós mesmos, que digo? entre nós e a nossa própria consciência, um véu se interpõe, véu espesso para o comum dos homens, véu ligeiro, quase transparente, para o artista e para o poeta. Que fada teceu esse véu? Foi por malícia ou por amizade? Era preciso viver, e a vida exige que aprendamos as coisas na relação que elas tem com as nossas necessidade. Viver consiste em agir. Viver é não aceitar dos objetos senão a impressão útil para responder a eles por reações apropriadas; as outras impressões devem obscurecer-se ou não chegar até nós senão confusamente. Eu olho e creio ver, escuto e creio ouvir, estudo-me e creio ler no fundo do meu coração. Mas o que eu vejo e o que eu ouço do mundo exterior é simplesmente o que os meus sentidos dele extraem  para esclarecer a minha conduta; o que conheço de mim mesmo é o que aflora à superfície, o que toma parte na ação. Os meus sentidos e a minha consciência não me exibem da realidade, senão uma simplificação prática.Na visão que me dão das coisas e de mim mesmo, as diferenças inúteis ao homem apagam-se, as semelhanças úteis ao homem acentuam-se, caminhos me são traçados de antemão em que a minha ação se internará. Estes caminhos são aqueles em que a humanidade inteira passou antes de mim. As coisas foram classificadas em vista do partido que se poderia tirar delas. E é esta classificação que eu apercebo, muito mais do que a cor e do que a forma das coisas. Sem dúvida o homem é já muito superior ao animal nesse ponto. É pouco provável que o olho do lobo estabeleça qualquer diferença entre o cabrito e o cordeiro; são para o lobo duas presas idênticas, sendo igualmente fáceis de apanhar, igualmente boas para comer. Nó é que fazemos uma certa diferença entre a cabra e o carneiro; mas distinguimos uma cabra duma cabra, um carneiro dum carneiro? A Individualidade das coisas e dos seres escapa-nos todas as vezes que nos não é materialmente útil apercebê-la. E ai mesmo, onde nós observamos (como quando distinguimos um homem de outro homem), não é a individualidade mesmo que a nossa vista aprende, isto é, uma certa harmonia completamente original de forma e de cores, mas apenas um ou dois traços que facilitarão o reconhecimento prático. 
                 Enfim, para dizer tudo, nós não vemos as mesmas coisas; limitamo-nos, a maior parte das vezes, a ler etiquetas coladas sobre elas. Esta tendência, saída da necessidade, ainda se acentuou sob a influência da linguagem. Porque as palavras (à exceção dos nomes próprios) designam todas gêneros. A palavra, que não nota da coisa senão a sua função mais comum e o seu aspecto banal, insinua-se ente ela e nós mesmos, e mascararia a sua forma aos nossos olhos se essa forma não se dissimulasse já por trás das necessidades que criam a própria palavra.  E não são apenas os objetos exteriores, são também os nossos próprios estados de alma que se nos furtam no que tem de íntimo, de pessoal, de originalmente vivido. 
                 Quando experimentamos amor ou ódio, quando nos sentimos alegres pu tristes, é bem o nosso próprio sentimento que chega à nossa consciência com as mil nuanças fugidias e as mil ressonâncias profundas que fazem dele alguma coisa de absolutamente nosso? Seríamos então todos romancistas, todos poetas, todos músicos. Mas a maior parte das vezes não nos apercebemos do nosso estado de alma senão o seu desenvolvimento exterior. Não aprendemos dos nossos sentimentos senão o seu aspecto impessoal, aquele que a linguagem pôde notar, uma vez para sempre,  porque é aproximadamente o mesmo, nas mesmas condições, para todos os homens. assim, até no nosso próprio indivíduo, a individualidade nos escapa. Movemo-nos entre generalidades e símbolos, como num campo fechado em que a nossa força se mede utilmente com outras forças; e fascinados pela ação, atraídos por ela, para o nosso maior bem, para o terreno que para si escolheu, vivemos numa zona intermédia entre nós e as coisas, exteriormente às coisas, exteriormente também a nós mesmos. Mas de quando em quando, por distração, a natureza suscita almas mais desapegadas da vida.  Não falo desse desapego querido, raciocinado, sistemático, que é a obra de reflexão e de filosofia. Falo dum desapego natural, inato à estrutura do sentido ou da consciência, e que se manifesta espontaneamente por uma maneira virginal, de algum modo, de ver, de ouvir ou de pensar. Se este desapego fosse completo, se a alma não aderisse mais à ação por nenhuma das suas percepções, ela seria a alma dum artista como o mundo ainda não viu. Distinguir-se-ia em todas as artes ao  mesmo tempo, ou antes as fundiria todas numa só. Aperceberia todas as coisas na sua pureza original, tanto as formas, as cores e os sons do mundo material, como os mais sutis movimentos da vida interior. Mas é pedir demais à natureza. Para aqueles mesmos que ela fez artistas, foi acidentalmente, e dum único lado, que levantou o véu, que se esqueceu de ligar a percepção à necessidade. E como cada direção corresponde a um sentido, é por um dos seus sentidos, e por esse sentido somente, que o artista é votado à arte. Dai, na origem, a diversidade das artes. Este aplica-se às cores e a formas, e como ama a cor pela cor, a forma pela forma, como as percebe para elas e não para ele, é a vida interior da coisas que verá transparecer através das suas formas e das suas cores. Ele a fará entrar pouco a pouco na nossa percepção ao princípio, desconcertada. Por um momento, pelo menos, nos desembaçará dos preconceitos de forma e de cor que se interpunham entre os nossos olhos e a realidade. E realizará assim a mais alta ambição da arte, que é aqui revelar-nos a natureza. - Outros recolher-se-ão de preferência em si mesmos. Sob as mil ações nascentes que desenham de fora um sentimento, detrás da palavra banal e social que exprime um estado de alma individual, é o sentimento, é o estado de alma que eles irão procurar simples e puro. E para nos induzir a tentar o mesmo esforço sobre nós mesmos engenhar-se-ão a fazer-nos ver alguma coisa do que tiveram visto; por arranjos rítmicos de palavras, que chegam assim a organizar-se conjuntamente e a animar-se duma vida original, dizem-nos, ou antes sugerem-nos coisas que a linguagem não era feita para exprimir. - Outros cavarão mais profundamente ainda. Sob essas alegrias e essas tristezas que podem com rigor traduzir-se em palavras, aprenderão alguma coisa que já não tem nada de comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem que os seus sentimentos mais interiores, sendo a lei viva, variável com cada pessoa, da sua depressão e da sua exaltação, das suas saudades e das suas esperanças. Desprendendo, acentuando esta música, impo-la-ão à nossa atenção; farão que nós mesmos nos insiramos nela involuntariamente, como transeuntes que entram numa dança. E por ai nos levarão a agitar também, mesmo no fundo de nós, alguma coisa que esperava o momento de vibrar. - Assim, a arte não tem outro objeto senão afastar os símbolos praticamente úteis, tudo o que nos mascara a realidade, para nos pôr face a face com a realidade mesmo. Foi dum mal-entendido sobre este ponto que nasceu o debate entre o realismo e o idealismo na arte. A arte não é seguramente senão uma visão mais direta da realidade. Mas esta pureza de percepção implica uma ruptura com a convenção útil, um desinteresse inato e especialmente localizado do sentido ou da consciência, enfim uma certa imaterialidade da vida, que é o que sempre se chamou idealismo. De maneira que se poderia dizer, que o realismo está na obra quando o idealismo está na alma, e que é à força de idealidade somente que se toma contato com a ralidade. 
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Henrique Bergson, filósofo francês, nasceu em Paris em 1859. Aos 22 anos entrou na Escola Normal superior. Ensinou durante 17 anos nos liceus da província, depois de Paris, e em 1899 foi nomeado professor da Escola Normal. Foi professor do Colégio de França desde 1900. Begson é um filósofo original de longa e profunda influência, além de notável escritor. As suas obras são por toda a parte e em todos os campos, estudadas e discutidas; apoiam-se nelas, além de várias correntes filosóficas, uma corrente religiosa e um movimento socialista: o modernismo católico e o sindicalismo revolucionário. - Obras principais: E'ssai sur les données immediates de la conscience, 1889; Matiére et mémoire, 1896; Le Rire, 1900; l'Evolution créatrice, 1907. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

O GRUPO DO LAOCOONTE E O APOLO DO BELVEDER

Esta escultura de mármore, também conhecida como Laocoonte e seus Filhos, está no Museu do Vaticano e é uma das mais importantes obras do mundo antigo.


                  No meio de tantas obras primas desaparecidas, e a atestar a magnificência dessa época que produziu tantas, salvou-se da destruição uma obra famosa, para maravilha de todo o mundo. Refiro-me ao Laocoonte  com os dois filhos, Obra de Agezandro, Apollodoro e Athanadoro,  de Rhodes...  Sabe-se que já ma antiguidade se preferia esta obra a todos os quadros e a todas as estátuas, e merece tanto mais a atenção e a admiração da posteridade quanto é certo que ela nunca produziu nada que se lhe pudesse comparar. O filósofo acha nela uma matéria de reflexões e o artista um assunto inesgotável de estudo, e ambos eles podem convencer de que esse primor oculta ainda mais belezas do que as que a vista descobre, e que o gênio do artista era bem maior do que a sua obra. 
                 Laocoonte é uma natureza entregue à mais alta dor imaginável, representada na figura de um homem que procura reunir contra ela todas as forças conscientes do espírito. Enquanto o sofrimento lhe intumesce os músculos e lhe repuxa os nervos vê-se toda a força do seu espírito, armada contra a dor na sua testa franzida, e o seu peito oprimido pela respiração e pelo constrangimento elevar-separa esconder e concentrar o tormento que lhe vai na alma. Os medrosos suspiros que retem em si o seu hálito que esconde no seu ser, comprimem-lhe o abdômen e escavam-lhe as ilhargas, de maneira a revelar-nos os movimentos das suas vísceras. Mas os seus próprios sofrimentos parecem angustiá-lo menos do que os padecimentos de seus filhos, que fixam os olhos no rosto do pai e lhes gritam por socorro; porque a ternura paterna transparece-lhe nos olhos compadecidos e a compaixão parece nadar neles como num vapor sombrio. A sua fisionomia exprime os lamentos, e não os gritos; os seus olhos dirigem-se para o auxílio supremo. A boca é cheia de ansiedade e o lábio superior, puxado para cima com um movimento de amargura, como num sofrimento imerecido e indigno, levanta-se até ao nariz, incha-o e faz ver as narinas dilatadas e levantadas. 
                  Por baixo da testa representa-se com a maior intensidade essa luta entre a dor e a resistência, como aglomerada num ponto, porque enquanto a dor fez alçar as sobrancelhas, o esforço comprime a carne acima do olho e fá-la descer até a pálpebra inferior, que se acha quase inteiramente coberta pela carne. O artista, não podendo embelezar a natureza, procurou dar-lhe maior desenvolvimento, maior contenção, maior vigor; ali mesmo onde ele colocou a maior dor, transparece também a maior beleza. O lado esquerdo, em que a serpente com sua furiosa mordedura espalha a peçonha, é aquele que pela proximidade do coração mais parece sofrer; esta parte do corpo de Laocoonte pode ser considerada como uma maravilha de arte.  As pernas querem-se-lhe erguer, para escapar do mal; nenhuma parte está em repouso; e os golpes mesmo do cinzel aumentam a expressão dessa   pele transita.
                  A estátua de Apolo é o supremo ideal de arte em todas as obras dos antigos que escaparam à destruição dos tempos. O artista compôs uma figura puramente ideal e apenas empregou o bocado essencialmente necessário para realizar a sua ideia e torná-la visível. Este Apolo exerce todas as outras representações do mesmo deus num grau igual àquele em que o Apolo de Homero exerce o que descrevem os restantes poetas. A sua estatura eleva-se acima dos homens, e a sua atitude anuncia a grandeza que encerra. Uma primavera eterna, como a que existe nos afortunados Elísios, lhe reveste a formosa virilidade duma juventude aprazível e lhe brinca com doce meiguice na soberba estrutura dos seus membros. Para compreender esta obra prima é preciso ir em espírito ao reino da beleza incorpórea e experimentar tornarmo-nos os criadores duma natureza celeste para encher o espírito de uma beleza como não há no mundo real. Porque ai não há nada mortal nem que esteja sujeito às necessidades humanas. Nenhuma veia, nenhum nervo, aquece e agita esse corpo, mas um espírito celeste, que circula como um doce eflúvio, enche, por assim dizer, todo o contorno daquela estátua. 
                   Acaba de perseguir Python, contra quem brandia pela primeira vez o seu arco; alcançou-o na sua rápida carreira, deu-lhe a morte. Do ato da sua satisfação, dirige o augusto olhar como para o infinito, muito para além da sua vitória. Lê-se o desdém nos seus lábios e a indignação que em si abriga, dilata-lhe as narinas e sobe-lhe até à fronte soberba. Mas a paz, que nela paira numa bonança bem-aventurada, mantém-se inalterável, e os seus olhos estão cheios de doçura, como no meio das musas, quando elas o procuram abraçar. Em todas as figuras que nos restam  do Pai dos Deuses e que a arte reverencia, nenhuma há que se aproxime da grandeza com que ele se manifestou ao gênio do poeta divino (Homero), mas aqui na fisionomia do filho, acha-se reunidas as belezas individuais de todas as outras divindades, como em Pandora. Uma fronte de Júpiter, que está prenhe da deusa da sabedoria, e umas sobrancelhas que nos seus movimentos manifestam a vontade do deus; uns olhos da rainha dos deuses arqueados com majestade, e uma boca que, como a do amoroso Baco, respira a volúpia. A cabeleira flexível flutua-lhe em torno da cabeça, como os tenros sarmentos da vinha quando os agita uma brisa suave. Parece ungida com a essência dos deuses, e foram as Graças que, com uma majestade encantadora lha foram atar no alto da cabeça. À vista desta maravilha da arte, esqueço todo o universo e tomo uma atitude de espírito elevado para a contemplar com dignidade. O peito dilata-se-me e eleva-se de admiração, como aqueles que eu vejo cheios do espírito das profecias, e sinto-me transportado a Delfos e aos bosques de Lícia, lugares que Apolo honrava com sua presença. Efetivamente, a imagem que tenho diante dos olhos torna-se vida e movimento, como a beleza aos olhos de Pigmalião. Como poder pintá-la e descrevê-la! A ideia que acabo de dar desta imagem, eu a deposito aos seus pés, como aqueles, que vindo para coroar os deuses com as suas grinaldas, lhas punham  aos pés, por não poderem atingir as suas cabeças.