sexta-feira, 11 de agosto de 2017

A EXPRESSÃO DA DOR NA ARTE E NA LITERATURA

 Lessing 
                  Depois de examinar as razões alegadas para que o  escultor do Laocoonte tivesse sido obrigado a moderar a expressão da dor corporal, acho que todas elas devem ser atribuídas à própria natureza da sua arte, às suas exigências e aos seus limites. Nenhuma delas poderia aplicar-se à poesia. 
                  Sem pretender decidir neste lugar até que ponto o poeta pode descrever a beleza física, é fora de dúvida que, como todo o infinito reino da perfeição está aberto à sua imitação, o invólucro exterior, sob o qual a perfeição se torna beleza, não forma senão um dos meios mais insignificantes com que ele pode despertar o nosso interesse pelas suas figuras.  Muitas vezes despreza inteiramente estes meios, tendo por certo que, se o seu herói despertou a nossa consideração, de duas uma: ou as suas mais nobres qualidades absorveram de tal modo a nossa atenção que nem  pensamos na sua forma  corporal; ou então, quando nisso pensamos, elas preocupam-nos de tal forma que lhe atribuiremos no nosso espírito um exterior, senão bela, pelo menos não desejável.  Em todo o caso, o poeta não concederá nenhuma importância ao sentido da visita, senão naqueles traços especiais que destina expressamente a esse sentido. Quando o Laocoonte  de Virgílio grita, a quem é que ocorre que para gritar é mister abril muito a boca e que uma boca assim é horrorosa? Basta que clamores horrendos ad sidera tollit produza um bom efeito sobre o ouvido, e sobre a vista faça o efeito que puder. E se alguém sente nesse caso a necessidade de um belo quadro, é porque todo o efeito poético se perdeu para ele. 
                  O poeta, além disso, não há nada que o obrigue a concentrar a sua descrição num único momento. Ele pode tomar à vontade qualquer ação particular desde a sua origem e conduzi-la, por todas as variações possíveis, até ao seu desfecho. Nenhuma dessas variações, cada uma das quais exigiria ao artista um quadro separado, requer dele mais do que um simples traço; e esse traço, que considerado isoladamente pode ofender a imaginação do leitor, vem de tal maneira preparado com aquilo que o precede e será de tal modo abrandado com aquilo que o segue, que perde a sua impressão individual e, na sua combinação com os outros, produz o melhor efeito possível. Todavia, ainda que fosse realmente indecoroso que um homem gritasse no acesso de uma dor enorme, que má impressão poderia produzir este leve e momentâneo defeito, se as suas virtudes já provocaram a nossa estima? O Laocoonte de Virgílio grita, é certo, mas esse Laocoonte que grita é o mesmo que nós já conhecemos e amamos como o mais considerado dos patriotas e o mais afetuoso dos pais. Atribuímos o seu grito, não à fraqueza do seu ânimo, mas ao acesso da sua dor. É isto, e nada mais, o que ouvimos nos seus gritos, e só por eles o poeta podia ter representado essa dor de maneira tão vívida. 
                 Quem não o censuraria ainda? Quem não reconhecerá, pelo contrário, que se o artista andou bem em não fazer gritar Laocoonte, o poeta andou igualmente bem em o fazer gritar? 
                Mas Virgílio aqui é simplesmente um poeta narrativo; poderá a sua justificação abranger também o poeta dramático? São duas impressões inteiramente diversas, a que nos deixa a descrição de um grito, e a que nos causa o próprio grito. O drama que, por meio do ator, se torna uma pintura viva, deverá talvez por essa razão confinar-se de maneira estrita dentro dos limites da arte material. Porque ali já não imaginamos apenas que vemos e ouvimos um Filoctete que grita, mas vê-mo-lo e ouvi-mo-lo realmente gritar. Quanto mais o ator se aproxima da natureza, mas os nossos olhos e os nossos ouvidos serão susceptíveis de ofensa; porque é indiscutível que é isso o que acontece na vida real, quando ouvimos e notamos expressões de dor violenta. Além disso, a dor física não desperta  nossa compaixão no mesmo grau que os outros sofrimentos. A nossa imaginação pouco pode descobrir nela para acordar em nos um sentimento equivalente. Por consequência Sófocles, fazendo gemer e gritar e rugir Filoctete e Hércules, teria incorrido num defeito, não já simplesmente convencional, mas fundadona essência mesmo da nossa natureza afetiva. Não é possível que os espectadores da scena partilhem dos sofrimentos que aqueles desmedidos desabafos pareciam exigir. Observando-os, parecer-nos-ão frios e indiferentes, e contudo não podemos senão considerar a sua compaixão como a medida da nossa. A isto pode acrescentar-se que o ator dificilmente pode, se lhe não é mesmo impossível, dar a ilusão perfeita da dor corporal, e os nossos modernos dramaturgos são talvez mais merecedores de louvor do que de censura por terem evitado esse escolho, ou pelo menos o terem superado numa casa de noz. 
                Quantas coisas não pareceriam incontraditáveis em teoria, se o gênio não tivesse conseguido provar com fatos o contrário! Nenhuma das considerações precedentes é infundada; não obstante, o Filoctete deverá sempre considerar-se como uma das obras primas do teatro. 
                Efetivamente, nenhuma dela se aplica a Sófocles, e foi somente por se elevar acima dos restantes que ele atingiu essas belezas que o crítico pouco audaz, sem o seu exemplo, nunca tria sonhado.  As reflexões seguintes darão mais nitidez ao meu pensamento: 
                1/ Quão maravilhosamente sabe o poeta reforçar e expandir a ideia do sofrimento material! Escolheu uma ferida - (porque devemos reputar como dependentes da sua escolha as próprias circunstâncias históricas, e foi por causa dessas circunstancias que preferiu, que escolheu toda a história) - escolheu uma ferida, ia eu dizendo, e não já uma doença interna, porque aquela pode representar-se duma maneira mais impressiva do que esta, apesar de igualmente dolorosa. A interna chama que devorou Meleagro, quando sua mãe o sacrificou ao seu furor, por meio do fatal brandão, seria por isso menos dramática do que uma ferida. E esta ferida foi, além disso, um castigo dos deuses. Um veneno sobrenatural o devorava por dentro incessantemente, e de tempos a tempos uma dor mais violenta fazia cair o infeliz num letargo para dar tempo à natureza exausta de se restaurar e retomar ainda o mesmo caminho de sofrimento. Chateaubrun fá-lo ferir com a seta envenenada dum troiano. Quem pode esperar alguma coisa de extraordinário de um acidente tão comum? Nas guerras de outrora todos se expunham a isso; donde vem então que só para Filoctete houvesse consequências tão terríveis? Demais, um veneno natural que pode atuar durante nove anos inteiros sem matar, é um caso muito mais inverossímil que todas as fábulas maravilhosas com que o grego enriqueceu a sua obra. 
                  2/ Mas, por maiores e por mais terríveis que Sófocles tivesse feito os sofrimentos físicos do seu herói, ele bem compreendeu que eram por si sós insuficientes para excitar nos espectadores um forte sentimento de compaixão. Por isso lhes justapôs outros males, que tomados isoladamente não bastariam para comover profundamente a alma, mas que,  pela sua combinação, tomavam a mesma cor melancólica, que por sua vez comunicavam ao sofrimento físico. Estes males eram: o absoluto isolamento de todo o convívio humano, a fome e todos os incômodos da vida a que qualquer está sujeito em tal isolamento, e num clima inclemente. Imaginemos um homem em tais circunstâncias, mas gozando de saúde, de vigor e de habilidade, e teremos um Robinson Crusoé que, ainda que o seu destino não seja indiferente, tem contudo menos direito à nossa piedade. Porque raramente nos achamos tão satisfeitos com a sociedade humana que não nos pareça apetecível a tranquilidade que só pode gozar distante dela, especialmente com a ideia, bastante lisonjeira, de podermos ir passando de pouco a pouco sem o auxílio dos outros homens. Por outro lado, suponhamos um homem aflito com a doença mais dolorosa e incurável, mas rodeado ao mesmo tempo por amigos diligentes, que não permitem que nada lhe falte, que aliviam o seu infortúnio, e na presença dos quais ele desafoga livremente os seus lamentos e as suas mágoas. Sem dúvida nenhuma, teremos piedade dele, mas essa piedade não será de longa duração; encolheremos por fim os nossos ombros e acabaremos por lhe recomendar que tenha paciência. Só quando esses dois casos se justapõem, quando, na sua solidão, ele não é senhor do seu corpo; quando o paciente não tem outro auxílio senão aquele com que pode acudir a si mesmo, e os seus lamentos se perdem no ar deserto - só então é que vemos toda a soma de misérias com que pode ser torturada a humanidade subjugando um único homem, e que pondo-nos por momentos no seu lugar, só ao pensar nisso sentimos terrores e calafrios. Não vemos diante de nós senão o desespero na sua forma mais trágica, e não há compaixão mais forte, nem nada dilacera mais a alma, do que a piedade que é fundada na ideia do desespero. Tal é o dó que sentimos por Filoctete, e sentimo-la mais fortemente no momento em que vemos privado do seu arco, o arco que era o seu único meio de prolongar a miserável existência. Que diremos do autor francês que não teve inteligência para compreender, nem coração para sentir isso? Ou, tendo-os, foi bastante mesquinho para sacrificar tudo ao gosto vil da sua nação? Chateaubrun  dá a Filoctete companheiros. Fez vir àquela ilha deserta, onde está o herói, uma jovem princesa. E não vem sozinha; acompanha-a a sua dama de honra. da qual não saberei dizer se tinha mais precisão a princesa, se o poeta. Omitiu impressionante incidente do arco, e substituiu-o pela ação de dois olhos formosíssimos. Certamente um arco e algumas setas proporcionariam um grande divertimento e fariam rir muito a mocidade heroica da França; enquanto que nada há de mais sério para ela do que o desdém de dois olhos formosíssimos. O grego tortura-nos a alma com a apreensão de que o desventurado Filoctete será forçado a ficar naquela ilha deserta sem o seu arco, e ali deve morrer miseravelmente. O francês conhece uma via mais segura para se dirigir aos nossos corações: fás-nos temer que o filho de Aquiles tenha de partir sem a sua princesa. A isto chamam os críticos parisienses triunfar sobre os antigos, e um deles chegou a propor que se desse à tragédia de Chateaubraun o título de "La difficulté vaincue." 
                  3/ Depois de ter considerado o efeito da peça de Sófocles no seu conjunto, vamos agora considerar separadamente as cenas em que Filoctete já não é o enfermo abandonado, mas tem esperanças de deixar bem depressa aquela ilha triste e solitária e voltar ao seu reino - onde, afinal, todo o seu infortúnio se concentrará naquela ferida dolorosa. Geme, grita, debate-se nas mais horrendas convulsões. Dão-se boas razões para se dizer  que neste ponto o poeta grego pecou contra a consciência. Foi um inglês que levantou esta objeção - quer dizer, um homem que não pode ser suspeito de falsa delicadeza. Como já fiz ver, ele assenta a sua crítica sobre muito boas razões. "Todos os sentimentos", diz, "e de todas as paixões com que os outros não podem simpatizar abertamente, tornam-se desagradáveis se são expressas com demasiada intensidade. É pela mesma razão que parece sempre impróprio e indigno de um homem não saber suportar as dores, mesmo as mais intoleráveis, e gemer, e gritar. É verdade que há sempre uma certa simpatia para com a dor corporal. Se, como tantas vezes tem sido observado, vejo alguém ir levar um golpe num braço ou numa perna, tremo imediatamente e puxo para trás a perna ou o braço, e se o golpe é efetivamente vibrado, sinto-o quase tão bem como aquele que o recebe. Todavia é fora de dúvida que o mal que sentimos é excessivamente leve, e se aquele que recebeu o golpe solta um grito, não posso deixar de lho levar a mal, porque não me acho como ele na disposição de gritar."
                  Não há erro maior do que querer estabelecer regras gerais para os nossos sentimentos. São eles entretecidos duma maneira tão delicada e tão complexa, que é dificílimo, mesmo para o mais atento observador, agarrar um simples fio e segui-lo entre todos os outros que o cruzam. E se o conseguir, que vantagem advirá dai? Na natureza não há sentimentos verdadeiramente simples; com cada um deles implica milhares de outros, o menor dos quais basta para alterar inteiramente o sentimento primitivo, oferecendo-nos por esta forma, uma complexidade cada vez maior, de modo que por fim  o que nós suponhamos ser uma regra geral não passa duma simples experiência de alguns casos isolados. Desagrada-nos, diz o inglês, ouvir gritar violentamente aquele a quem a dor física incomoda.  Mas nem sempre; não a primeira vez que grita; não quando vemos que ele faz o possível para dominar a sua dor; não se o conhecermos já por homem de caráter resoluto; ainda menos se, no mesmo instante em que sofre, ele dá mostras da sua coragem, se vemos que a sua dor pode obrigá-lo a gritar, mas não a fazer coisas indignas dele, e que antes quer sujeitar-se à prolongação dos seus sofrimentos do que mudar seja o que for às suas ideias ou às suas resoluções, mesmo que uma tal alteração pudesse por fim aos seus padecimentos. Tudo isso achamos em Filoctete. A grandeza moral dos antigos gregos consistia na perseverança inalterável, tanto no amor para com o amigo, como no ódio contra o inimigo. Essa grandeza moral achamo-la em Filoctete no meio das suas torturas. A sua dor não lhe secou de tal maneira os olhos, que não possa verter ainda algumas lágrimas sobre a sorte dos seus antigos amigos; nem o humilhou tanto que para escapar a ela consinta  em perdoar aos seus inimigos e a servir de instrumento nas suas mãos. E este verdadeiro rochedo contra a adversidade poderia ter sido desprezado pelos atenienses, porque as ondas que não o podiam abalar o tinham feito ressoar algumas vezes? Confesso que não é muito do meu agrado a filosofia de Cícero, e especialmente aquela que ele sustenta no segundo livro das suas Contestações tusculanas  sobre a resignação perante a dor corporal. Diria-se que o que ele tinha em fito era amestrar um gladiador, por tal forma condena todas as expressões de sofrimento. Parece que a considera unicamente como um efeito de fraqueza da alma, sem refletir que nem sempre está na nossa mão sufocar a expressão da dor e que a nossa valentia não pode revelar-se senão nas nossas ações absolutamente voluntárias. Não ouve ele de Filoctete senão os gritos e os lamentos, e despreza inteiramente tudo quanto há de forte no seu caráter. Como podia de outra maneira ter ocasião para a sua invectiva retórica contra os fatos? "Farão de nós uns afeminados, porque fazer chorar os homens mais corajosos." Sim, eles devem fazê-los gritar, porque um teatro não é uma arena. Ao gladiador que por pena ou ganha-pão combate nos circos, bem convém sofrer todas as coisas com rosto imperturbável. Nem um lamento deve escapar dos seus lábios, nem uma convulsão revelar a sua dor. As suas feridas, e mesmo a sua morte, só se realizam para divertimento do espectador, e por isso te de aprender a arte de inteiramente o que lhe vai na alma.  O mais insignificante desabafo teria despertado compaixão, e a compaixão frequentemente despertada teria posto fim bem depressa a esses espetáculos tão friamente cruéis. 
                   Mas aquilo que devia a todo o transe evitar-se na arena forma, pelo contrário, o principal intento  do teatro trágico, e por isso este exige uma linha de conduta absolutamente oposta. Os seus heróis devem ostentar os seus sentimentos, devem dar expressão à sua dor, devem fazer ver que a sua natureza atua neles livremente. Se, pelo contrário, traem alguns sinais de quem quer calar o que sente, deixam de atingir a nossa alma, e gladiadores de coturno apenas podem excitar, quando muito, a nossa admiração. Esta é a designação que convém a todas as personagens das tragédias geralmente atribuídas a Sêneca, e eu estou firmemente convencido que os espectadores dos combates de gladiadores foram a principal causa porque os Romanos ficaram sempre na tragédia tanto abaixo da mediocridade. O espectadores aprendiam a esquecer a naturalidade no sanguinoso anfiteatro, que podia servir de escola a um Ctesias, mas nunca a um Sófocles. O mais trágico dos gênios, efeito a estas cenas artificiais de morte, devia necessariamente degenerar no bombástico e no fanfarrão. Ora, a fanfarronada não pode inspirar o verdadeiro heroísmo, como a dor de um Filoctete não inspira a fraqueza. As magoas são as de um homem, mas as ações são as de um herói. Umas como as outras fazem dele o herói humano, que nem é fraco nem endurecido, mas que parece ora uma coisa ora outra, segundo o requerem as leis gerais da Natureza ou os seus princípios e o seu dever. Ele é tudo o que de mais sublime pode produzir a retidão, e a arte imitar. 
                   4/ Não satisfeito Sófocles de ter preservado do desprezo a sensibilidade do seu herói, também andou judiciosamente em prevenir todas as objeções que se pudessem deduzir contra ele da observação do crítico inglês. Porque, se não desagrada sempre quem grita com uma dor corporal, não é menos certo que se não sente por ele uma compaixão proporcionada ao grito de dor que solta. Qual deve ser então a atitude das outras personagens da tragédia? Deverão mostrar-se fundamente impressionadas? Isso seria contrário à natureza. Ou deverão mostrar-se frios e embaraçadas, como acontece de ordinário em semelhantes casos? Isso produziria um efeito desagradável sobre o espectador. De tudo isto, como já disse, Sófocles se pôde guardar otimamente. Fê-lo dando também às figuras secundárias um interesse particular, de modo que não fazendo da impressão produzida pelos gritos de Filoctete a sua única preocupação, a atenção do espectador é dirigida, não tanto para a desproporção entre a sua piedade e esses gritos, mas antes para a transformação que por meio dessa piedade, seja qual for seu grau, vem a operar-se nos seus próprios sentimentos e desígnios. Neoptolemo e o coro enganaram o mísero Filoctete; eles reconhecem em que estado de desespero poderá mergulhá-lo o seu engano; e Filoctete depara com o seu desastre diante dos olhos deles. Se esse espetáculo não chega a produzir neles uma comoção correspondente à intensidade do seu tormento, todavia isso basta para refletirem no que tinham feito, terem consideração por tanta miséria e não porém o cúmulo a isto pela traição. Isto é o que espera o espectador, e a sua expectativa não é desmentida pelo magnânimo Neoptolemo.  Se Filoctete tivesse podido dominar a própria dor, Neoptolemo teria insistido na dissimulação; mas Filoctete, cuja dor o impossibilita de toda a dissimulação, por mais necessário que ela lhe pareça para não fazer com que os viajantes se arrependam das suas promessas de o levarem com eles, Filoctete deixa atuar em si livremente a natureza, e com usto obriga Neoptolemo a seguir o impulso da sua índole generosa. Esta conversão é sublime e tanto mais comovente quanto é certo que é operada simplesmente por humanidade. Na tragédia  do francês, os belos olhos da princesa também participam disto. Mas acabemos de uma vez com esta paródia... Este expediente de justapor à piedade, despertada pelos gritos de dor, emoção de uma outra espécie, foi também adotado por Sófocles no seu Trachiniae. A dor de Hércules não é a dor de quem se sente abatido, mas furioso e desejoso de vingança. Na sua fúria agarrou em Liches e esboroou-o de encontro ao rochedo.  O coro é composto por mulheres e é por isso mais natural que o medo e o horror o tivessem dominado. Este sentimento, unido à expectativa de ver se Hércules será salvo pelo auxílio de qualquer deus ou se terá de sucumbir ao infortúnio, é o que nesta tragédia forma propriamente o interesse geral, de que a compaixão não é mais do que uma ligeira gradação. Logo que o desfecho foi decidido pela resposta do Oráculo, Hércules torna-se tranquilo, e a admiração despertada pela sua última resolução domina todos os outros sentimentos. Na comparação do paciente, Hércules com o paciente Filoctete é preciso porém recordar que aquele é um semi-deus, enquanto este não passa de um homem.  O homem nunca se envergonha dos seus lamentos, mas o semi-deus envergonhar-se-ia de que a sua parte mortal sobrepujasse por tal forma a imortal que o fizesse gritar e gemer como uma rapariga. Nós, modernos, não acreditamos em semi-deuses, e no entanto o mais ínfimo dos seus heróis há de por força, sentir e proceder como se fosse um deles. 
Gotthold Ephraim Lessing,-  poeta, critico e dramaturgo alemão, nasceu em Camenz , (Saxe) em 22 de Janeiro de 1727, e morreu em Brunswick, a 15 de fevereiro de 1781. Foi educado em Meissen, e depois na Universidade de Lipsia, e trabalhou no jornalismo e na crítica em Berlim - 1748 - 1752. Interessou-se muito pelo teatro, publicou várias peças e foi feito diretor do teatro de Hamburgo.  De 1770 até a sua morte foi bibliotecário da Biblioteca ducal de Wolfenbüttel. A sua comédia "Minna von Barnhelm", 1765, foi a primeira peça nacional alemã. Obras principais: "Miss Sara Sampson, 1755; Laocoon, 1766, trabalho de estética; Dramaturgia de Hamburgo, 1767/68; Nathan, o Sábio, 1779, drama filosófico, etc. 

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