domingo, 13 de agosto de 2017

A OBRA DE ARTE

Hipólito Taine 
                   O assunto que vou tratar é a história da arte, e principalmente da pintura na Itália. Antes de entrar propriamente nesse curso, desejo indicar-vos o seu método e o seu espírito. 
                   O ponto de partida deste método consiste em reconhecer que uma obra de arte não é isolada, e por consequência em investigar o conjunto de que ela depende e que a explica. 
                   O primeiro passo não é difícil. Em primeiro lugar, e com toda a evidência, uma obra de arte, um quadro, uma tragédia, uma estátua, pertencem a um conjunto, quer dizer à obra total do artista que é o seu autor. Isto é elementar. Todos sabem que as diferentes obras de um artista são todas parentes, como se fossem filhas do mesmo pai, isto é, que tem entre si semelhanças notáveis. Sabeis que cada artista  tem seu estilo, um estilo que se encontra em todas as suas obras. Se é um pintor, tem o seu colorido, rico ou amortecido, os seus tipos preferidos, nobres ou vulgares, as suas atitudes, a sua maneira de compor, mesmo os seus processos de execução, os seus empastamentos, o seu modelado, as suas cores, o seu modo de fazer. Se é um escritor, tem as suas personagens, violentas ou pacíficas, as suas intrigas, complicadas ou simples, os seus desenlaces, trágicos ou cômicos, os seus efeitos de estilo, os seus períodos, e até o seu vocabulário. É tão verdade isto, que um conhecedor, ao apresentarem-lhe uma obra não assinada de um mestre um tanto eminente é capaz de reconhecer de que artista é essa obra, e isso quase  certamente; e se a sua experiência é bastante grande e o seu tato bastante delicado, pode dizer a que época da vida do artista, a que período do seu desenvolvimento pertence a obra de arte que lhe apresentam.
                   Eis o primeiro conjunto a que deve-se referir a obrade arte. 
                   Eis o segundo: Este mesmo artista, considerado com a obra total que produziu, não está isolado. Há também um conjunto em que está compreendido, conjunto maior do que ele, e que é a escola ou a família de artistas do mesmo país e da mesma época a que ele pertence. Por exemplo, em torno de Shakespeare que, à primeira vista, parece maravilha caída do céu e como um aerólito vindo de um outro mundo, acha-se uma dúzia de dramaturgos superiores, Webster, Ford, Massinger, Marlowe, Ben Jonson, Fletcher e Beaumont, que escreveram no mesmo estilo e no mesmo espírito que ele. O seu teatro tem os mesmos caracteres que os dele; nele encontrareis as mesmas personagensviolentas e terríveis, os mesmos desenlaces sanguinolentos e imprevistos, as mesmas paixões bruscas e desenfreadas, o mesmo estilo desordenado, bizarro, excessivo e esplêndido, o mesmo sentimento intenso, poético, do campo e da paisagem, os mesmos tipos de mulheres delicadas e profundamente amantes, - Do mesmo modo, Rubens parece uma figura única, sem percursores e sem sucessores. Mas basta ir à Bélgica e visitar as igrejas de Gand, de Bruxelas, de Bruges ou de Antuérpia, para notar todo um grupo de pintores cujo talento é semelhante ao seu: Crayer em primeiro lugar, que foi considerado no seu tempo como seu como seu rival,  Adam Van Noort, Gérand Zeghers  Romboutz, Abraão Jansens, Van Roose, Van Thuldem, João Van Oost, outros ainda que vós conheceis, Jordeans, Van Dick, que conceberam todos a pintura no mesmo espírito, e que, entre diferenças próprias, conservam sempre um ar de família.  Como Rubens, comprazeram-se em pintar a carne florescente e são, a rica e frequente palpitação da vida, a polpa sanguínea e sensível que se ostenta opulentamente à superfície do ser animado, os tipos reais e muitas vezes os tipos brutais, o élan e o abandono do movimento livre, os esplêndidos luzidos e recamados, os reflexos da púrpura e da seda, a gala das roupagens agitadas e torcidas.  Hoje em dia o seu grande contemporâneo parece ofuscá-los sob a sua glória; mas nem por isso é menos verdade que, para o compreender, é preciso reunir em volta dele esse feixe de talentos de que ele é a haste mais alta, e essa família de artistas de que ele é o mais ilustre representante. 
                 Eis um segundo passo. Resta um terceiro a fazer. Esta família de artistas está compreendida num conjunto mais vasto, que é o mundo que a rodeia e cujo gosto é conforme o seu. Porque o estado dos costumes e do espírito é o mesmo para o público e para os artistas; eles não são homens isolados. É só a sua voz que nos ouvimos neste momento através da distância dos séculos; mas por baixo dessa voz estrepitosa que vem vibrando até nós, distinguímos um murmúrio e como um vasto sussurro, a grande voz infinita e múltipla do povo que cantava em uníssono em torno deles. Eles não foram grandes senão em virtude dessa harmonia. E era preciso que assim fosse: Phidias, Ictinus, os homens que fizeram o Parthenon  e o Júpiter Olímpico, eram, como os outros atenienses, cidadãos livres e pagãos, educados na "palestra", tendo-se exercitado nus, habituados a deliberar e a votar na praça pública, tendo os mesmos hábitos, os mesmos interesses, as mesmas ideias, as mesmas crenças, homens da mesma raça, da mesma educação, da mesma língua, de modo que, por todas as partes importantes da sua vida, vinham a ser semelhantes aos seus espectadores. 
                  Esta concordância torna-se ainda mais sensível se se considera uma época mais aproximada da nossa; por exemplo, a grande época espanhola, que se estende desde o século XVI até aos meados do século XVII, a dos grandes pintores, Velasques, Murillo, Zurbaran, Francisco de Herrera, Alonzo Cano, Morales, a dos grandes poetas, Pole de Vegam Calderon, Cervantes, Tirso de molina, D. Luiz de Leon, Guilhem de Castro e tantos outros. Sabeis que a Espanha nessa época era toda monárquica e católica, que vencia os Turcos em Lepanto, que fundava feitorias, na África, que combatia os protestantes na Alemanha, os perseguia na França, os atacava na Inglaterra, que convertia e subjugava-os idólatras do novo mundo, que expulsava do seu seio os Judeus e os Mouros, que purificava a sua própria crença à força de autos-de-fé e de perseguições, que prodigalizava as frotas, os exércitos, o ouro e a prata da sua América, o mais preciosos sangue dos seus filhos, o sangue vital do seu próprio coração, em cruzadas desmedidas e multiplicadas, com tal obstinação e tal fanatismo que caiu exausta ao fim de século e meio sob os pés da Europa, mas com tal entusiasmo, com tal esplendor de glória, com fervor tão nacional, que os seus súditos, amorosos pela monarquia em que se concentravam as suas forças e pela causa a que dedicavam a sua vida, não experimentavam outro desejo que não fosse o de exaltar a religião e a realeza, e de formar em torno da Igreja e do trono um coro de fiéis, de combatentes e de adoradores. 
                   Nessa monarquia de inquisidores e de cruzados, que conservam os sentimentos cavaleirescos, as paixões sombrias, a ferocidade, a intolerância e o misticismo da Idade Média, os maiores artistas são homens que possuíram, no mais alto grau, as faculdades, os sentimentos e as paixões desse público que os rodeava. Os poetas mais célebres, Lope de Vega e Calderon, foram soldados de aventura, voluntários da Armada, duelistas e amorosos, tão exaltados, tão místicos no amor como os poetas e os D. Quixotes dos tempos feudais; católicos apaixonados, tão ardentes que no fim de sia vida um deles se fez familiar da Inquisição, que outros se fazem padres, e que o mais ilustre de todos eles, o grande Lope, dizendo a missa, desmaia ao pensar no sacrifício e no martírio de jesus Cristo. Por toda a parte encontraríamos exemplos semelhantes da aliança e da harmonia íntima que se estabelece entre o artist e os seus contemporâneos; e podemos concluir com segurança que, se se quiser compreender o seu gosto e o seu talento, as razões que lhe fazem escolher tal gênero de pintura ou de drama, preferir tal tipo e tal colorido, representar tais sentimentos, é no estado geral dos costumes e do espírito público que se devem procurar. 
                 Chegamos assim a assentar esta regra, que, para compreender uma obra de arte, um artista, um grupo de artistas, é preciso conhecermos com exatidão o estado geral do espírito e dos costumes do tempo a que pertenciam. Ai se acha a explicação última; ai reside a causa primitiva que determina o resto. Esta verdade, meus senhores, é confirmada pela experiência; com efeito, se se percorrerem as principais épocas da história da arte, ver-se-á que as artes aparecem e desaparecem ao mesmo tempo que certos estados de espírito e dos costumes a que elas estão ligadas. - Por exemplo, a tragédia grega, a de Eschiles, de Sófocles e de Eurípides aparece a quanto a vitória dos Gregos sobre os Persas, na época heroica das pequenas cidades republicanas, por ocasião do grande esforço que lhes faz conquistar a sua independência e estabelecer o seu ascendente no universo civilizado; e vimo-la desaparecer com essa independência e essa energia, quando a depressão dos  caracteres e a conquista macedônica a entregam a Grécia aos estrangeiros. - Do mesmo modo, a arquitetura gótica desenvolve-se com o estabelecimento definitivo do regime  feudal na semi-renascença do século XI, no momento em que a sociedade, livre dos Normandos e dos salteadores, começa a consolidar-se; e vê-se desaparecer na ocasião em que esse regime militar de pequenos barões independentes, com o conjunto de costumes que dele derivava, se dissolve nos fins do século XV, pelo advento das monarquias modernas.  - Do mesmo modo também a pintura holandesa se desenvolve no momento glorioso em que,  à força de obstinação e de coragem, a Holanda acaba de se libertar da dominação Espanhola, combate a Inglaterra com armas iguais, e se torna o mais rico, o mais livre, o mais industrioso, o mais próspero estado europeu; e vimo-la decair no princípio do século XVIII, quando a Holanda, passando a um segundo plano, deixa o primeiro à Inglaterra, e se limita a ser uma casa bancária e comercial bem organizada, bem administrada, pacífica, em que o homem pode viver à sua vontade, como burguês prudente, isento de grandes emoções e de grandes ambições. - Finalmente, a tragédia francesa aparece quando a monarquia regular e nobre estabelece, sob Luiz XIV, o império das conveniências, a vida da côrte, abela representação, a elegante domesticidade aristocrática, e desaparece quando a sociedade nobiliárquica e os costumes de antecâmara são abolidos pela Revolução. 
                 Desejava tornar-vos sensível, por uma comparação, este efeito do estado dos costumes e dos espíritos sobre as belas artes. Quando, partindo dum país meridional, vós subis para o norte, notais que entrando numa certa zona se vê começar uma espécie particular de cultura e uma espécie particular de plantas; ao princípio o aloes e a laranjeiras, um pouco mais tarde a oliveira ou a vinha, em seguida o carvalho e a aveia, um pouco mais longe o abeto, por fim os musgos e os lichens.  Cada zona tem a sua cultura e a sua vegetação próprias; ambas elas começam no começo da zona e acabam no fim da zona; ambas lhe estão estreitamente ligadas. É ela que é a sua condição de existência; é ela que, pela sua presença ou pela sua ausência, as determina a aparecer ou a desaparecer. 
                 Ora, o que é a zona, senão uma certa temperatura, um certo grau de calor e de humildade, numa palavra, um certo número de circunstâncias reinantes, análogas no seu gênero ao que nós chamávamos ainda agora o estado geral do espírito e dos costumes? Assim como há uma temperatura física que, pelas suas variações, determinam a aparição de tal ou tal espécie de plantas, assim há também uma temperatura moral que, pelas suas variações, determina a aparição de tal ou tal espécie de arte. E assim como se estuda a temperatura para compreender a aparição de tal ou tal espécie de plantas, o milho ou a aveia, o aloes ou abeto, assim é preciso estudar a temperatura moral para compreender a aparição de tal ou tal espécie de arte, a escultura pagã ou a pintura realista, a arquitetura mística ou a literatura clássica, a música voluptuosa ou a poesia idealista.  As produções do espírito humano, como as da natureza viva, não se explicam senão pelo seu meio. 
                 Eis o estudo que este ano me proponho fazer perante vós para a história da pintura na Itália.  Tratarei de recompor aos vossos olhos o meio místico em que se produziram Giotto e Beato Angélico, e para isso ler-vos-ei os trechos dos poetas e dos escritores em que se pode ver  a ideia que os homens desse tempo faziam então da felicidade, da infelicidade, do amor, da fé, do paraíso, do inferno, de todos os grandes interesses da vida humana. Encontraremos esses documentos nas poesias de Dante, de Guido Cavalcanti, dos religiosos franciscanos, na Lenda dourada, na Imitação de Jesus Cristo, nas Fioretti de São Francisco, nos historiadores como Dino Compagni, nessa vasta coleção de cronistas reunidos por Muratori, e que pintam com tanta sinceridade os ciúmes e as violências das suas pequenas repúblicas. - Em seguida tratarei de recompor aos vossos olhos o meio pagão em que, século e meio mais tarde, se produziram Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael, Ticiano, e por isso vos lerei, quer nas memórias dos contemporâneos, de Benvenuto Cellini, por exemplo, quer nas diversas crônicas escritas dia a dia em Roma e nas principais cidades da Itália, quer nos despachos dos embaixadores, quer enfim nas descrições de festas, de mascaradas, de recepções solenes, fragmentos notáveis que vos mostrarão a brutalidade, a sensualidade, a energia dos costumes ambientes e, ao mesmo tempo, o vivo sentimento poético e literário, os gostos pitorescos, os instintos decorativos, a necessidade de esplendor externo, que se encontravam então no povo e na multidão ignorante como nos grandes e nos letrados.  
Hipólito Adolfo Taine, crítico, historiador e filósofo francês, nasceu em Vinziers a 21 de Abril de 1828, e morreu em Paris em 1893. Escreveu muitas obras importantíssimas, como: Essai sur les fables de La Fontaine, tese para doutorado, 1853; Essai sur Tite Live, 1855; Voyage aux Pyrenees, 1855; Les pilosofhes fraçais du dix-neuvième siecle, 1856; Essais de critique et d'histoire, 1858; Histoire de la litterature anglaise, 1864; Philosophie de l'art, 1805-1870; De l'ideal dans lárt, 1867; Voyage en Italie, 1863; De l'intelligence, 1870; les Origines de la France contemporaine, 1875-1880, a obra capital de Taine.
               

Nenhum comentário:

Postar um comentário