sábado, 5 de agosto de 2017

O ALEIJADINHO DE VILA RICA

                Quando o Aleijadinho veio ao mundo, os habitantes de Vila Rica das Minas Gerais ainda tinham na memória, horrorizados, o suplício de Filipe dos Santos, vítima da sanha desumana dos portugueses, que procuravam sufocar a qualquer custo a revolta contra o seu poder. 
                Era o dia 29 de agosto de 1730. Naquela velha casa, situada no arrabalde do Bom Sucesso, pertencente à Freguesia de N.S. da Conceição de Antônio Dias, nasceu Antonio Francisco Lisboa, que iria ser o maior escultor brasileiro, apesar de tão castigado em suas carnes. Foram seus pais Francisco da Costa Lisboa, hábil arquiteto português, e Isabel, uma de suas escravas africanas, a quem Lisboa libertou por ocasião do batismo do filho. Manuel Francisco Lisboa teve mais dois filhos com a mãe de Aleijadinho e alguns outros de seu legítimo matrimônio. Entre estes, achava-se o Padre Félix Antônio Lisboa, que faleceu em 30 de maio de 1838, o qual também tentou a escultura, mas sem resultado. O Aleijadinho instruiu-o à sua própria custa, para que pudesse receber as ordens sacras, e tratava-o com muita deferência. 
                 Vila Rica,  (Hoje Ouro Preto, cidade monumento nacional), nascera em um leito riquíssimo de ouro e esmeraldas, meta ambicionada dos bandeirantes e de toda a sorte de aventureiros que para lá se dirigiam, tendo como guia  o majestoso docel do Itacolomi. 
                  A velha Vila Rica, capital da província e depois Estado de Minas Gerais (até 1897). Situada a pouco mais de 100 quilômetros da atual capital mineira, a 1.100 metros sobre o nível do mar, na Serra do Espinhaço, cujo ponto culminante é o Itacolomi (1574 m), que se vê ao fundo, foi descoberta em 24 de junho de 1698 por Antônio Dias de Oliveira e pelo padre João de Faria Fialho. Vila Rica (hoje Ouro Preto, cidade monumento nacional) pouco mudou seu aspecto, sendo um grande ponto de atração turística, pelas suas relíquias históricas.
                  Os ecos da revolta ainda não se haviam apagado, nem se apagariam tão cedo, pois o fermento da rebelião ia preparando outro de maior repercussão, que teria epílogo em 1792, com a famosa Inconfidência Mineira, em que  se sacrificariam Tiradentes, o poeta Cláudio Manoel da Costa (que se suicidou na prisão),Tomás Antônio Gonzaga (o Dirceu de Marília), Alvarenga e outros idealistas. Filipe dos santos abrira o ciclo das lutas contra o despotismo e Joaquim José da Silva Xavier o fecharia. Portugal, que tudo tirara da região, ali deixara apenas dois símbolos da força: a cadeia e o palácio fortificado dos governadores. Dois monumentos de dor! 
                   De 1720 a 1740, iniciou-se, porém, em Vila Rica, a era dos grandes monumentos. E aí começaram a surgir essas maravilhas do barroco jesuítico, que se chamaram: São Francisco de Paula, santa Ifigênia, as Mercês, Conceição de Antônio Dias, e tantos outros templos, cujo número seria aumentado  pelo genial Aleijadinho. Era o domínio da religião, pois o povo daquele tempo não tinha mais em que pensar, confinado como se encontrava entre aquelas alcantiladas montanhas, quase sem comunicação com o mundo exterior. Ali morava, também, o Padre Faria, um taubateano que se tornou uma espécie de São Francisco de Assis mineiro, sempre angariando esmolas para edificar sua igreja. 
                 A cidade ainda vivia às escuras. A única iluminação era o luar ou, então fogueiras, lanternas, candelabros e luminárias das casas particulares. às dez horas, ouvia-se o toque de silêncio e a cidade adormecia. As festas de vila Rica era as procissões, famosas pelo seu esplendor, que atraíam visitantes dos mais remotos rincões do País. 
                E foi nesse ambiente provinciano que nasceu, viveu e morreu o Aleijadinho. Jamais saiu de sua província natal, em busca de ensinamentos, a observar modelos, desenvolver ideias. Era um iletrado, mal sabia ler e escrever algumas palavras, embora se falasse que possuía algum conhecimento de latim, talvez devido à convivência com os sacerdotes. Sua leitura preferida era a Bíblia, que também lhe servia como cartilha alfabetizante e lhe inspirou suas obras. Aprendeu noções de desenho e arquitetura com seu próprio pai e também com o desenhista pintor  João Gomes Batista, abridor de cunhas da casa de fundição de ouro. E, ali mesmo, iniciou Antônio Francisco sua carreira de arquiteto e escultor, onde excedeu todos os mestres de seu tempo, após um ligeiro aprendizado sob as vistas paternas. Percorreu quase toda a província, quando sua fama começou a projetar-se, e deixou traços de sua passagem e de seu gênio imortal em São João d'El Rei, Congonhas do Campo e outras cidades mineiras. Levou vida desregrada, dado a conquistas amorosas, até à idade de 47 anos, quando houve o nascimento de um filho natural, a quem deu o nome de seu pai. Sempre vivera cuidando de sua arte, amante de boa mesa e sempre gozando de boa saúde. 
                Em 1777, começaram a afligi-lo os male, segundo seus biógrafos, de origem venérea ou de um mal epidêmico, então conhecido como Zamparina, que sem tratamento causava paralisia, deformidade e até causando a morte precoce.  De qualquer forma, ou por haver negligenciado no tratamento ou por complicações gálicas, Antônio Francisco perdeu todos os dedos dos pés, o que o impossibilitou, daí por diante, de caminhar, sendo obrigado a arrastar-se de joelhos. Os dedos das mãos atrofiaram-se, chegando a cair, restando-lhe apenas os polegares e os indicadores.  Conta-se que, quando as dores o afligiam demasiadamente, tornava-se colérico e, então chamava por um escravo. Punha o formão sobre o dedo que o torturava e mandava um dos escravos, que eram seus ajudantes e aprendizes, que lhe assentasse um forte golpe de macete. Feito isto, continuava sua tarefa, indiferente ao sangue que corria pela pedra sabão, matéria prima de suas esculturas. 
                 À media em que os anos se passavam, as pálpebras se lhe inflamaram, caíram-lhe todos os dentes e a boca entortou-se, tombando para baixo o queixo e o lábio inferior. Seu olhar assumiu uma expressão sinistra, feroz, assustando mesmo a quem visse de repente. Sua feiura era tamanha que um dos seus escravos tentou suicidar-se com uma navalha, preferindo a morte a servir tão horrendo senhor. Alguns estudiosos dizem que sua enfermidade  proviera do abuso de cardina, substância que aperfeiçoava os conhecimentos artísticos. 
                 Antonio Francisco ficava furioso ao notar a desagradável impressão que causava nos outros seu horrendo aspecto; todavia, na intimidade, chegava a ser alegre e jovial. Não gostava que observassem, quando trabalhava, e por isso o fazia quase oculto por um toldo. Certa vez, o então governador Bernardo José de Lorena foi obrigado  sair de perto do escultor, tal a quantidade de estilhaços que este lhe atirava propositalmente. Servia-se do auxílio de um escravo africano, Maurício, para o trabalho de entalhe. O negro acompanhava-o por toda parte. Era ele quem lhe adaptava os ferros e o macete às mãos imperfeitas. O Alijadinho, como passou a ser denominado, usava também um aparelho de couro ou de madeira, à guisa de joelheiras,  e era de admirar a destreza com que subia pelas escadas mais altas. O escravo recebia a metade do que ganhava o senhor, e sua fidelidade era tanta que muitas vezes apanhava de macete atado às mãos e não protestava, embora fosse muito mais forte. Além de Maurício, serviam ao Aleijadinho outros dois escravos: Agostinho e Januário, aquele como auxiliar de entalhador e este para guiar-lhe o burro. Quando ia à missa, era carregado numa cadeira, por dois escravos, mas preferia ser levado ás costas por Januário, nas vezes em que ia a matriz de Antônio Dias, contígua à sua casa. Geralmente preferia fugir à vista de estranhos, saindo de madrugada para o serviço, regressando já noite fechada, exigindo que lhe fustigassem a montaria, para evitar olhares curiosos. 
                   Na sua imensa infelicidade, Antônio Francisco encontrava conforto na leitura da Bíblia e era nas escrituras sagradas que buscava alento e inspiração. Gostava também de ler livros de medicina, talvez procurando conhecer melhor o mal que o dilacerava. 
                  Nas obras de aleijadinho, observa-se sempre a intenção de um verdadeiro artista, buscando imprimir à pedra os sentimentos ou a dor que lhe ia no corpo e na alma. Atentando-se, principalmente, que não teve mestres científicos nem frequentou escolas, onde pudesse receber os conhecimentos indispensáveis a quem se dedica a tão difícil gênero artístico, deve-se convir que ele mereceu o justo renome de que gozou ainda em vida, e que agora se imortalizou. Na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, seu gênio se manifestou soberano. Sua é a planta, bem como a talha e a escultura do frontispício  da capela, os dois púlpitos, o chafariz da sacristia, as imagens das Três Pessoas da santíssima Trindade e dos Anjos, no altar-mor, a talha deste e a escultura referente à ressurreição de Cristo, a figura do Cordeiro sobre o Sacrário e toda a esculturado teto da capela-mor. 
                  Nota-se, nesses admiráveis trabalhos, mais inspiração do que propriamente técnica. No relevo que representa São Francisco recebendo os estigmas, o corpo e o o semblante do "Poverello" são deveras impressionantes e, junto ao santo, há esculpida uma açucena cujas hastes caem tão lânguidas e tão naturalmente que por isso não se pode deixar de homenagear o artista. Jesus pregando às turbas em Tiberíades, Jonas prestes a ser engolido pela baleia, os Evangelistas Mateus e João e as demais figuras alegóricas possuem realmente algo de divina inspiração. 
                  A imagem de São Jorge, figura imprescindível nas famosas procissões de Corpus Christis de Ouro Preto, possui, aliás, uma história pitoresca. O Aleijadinho raramente trabalhava sem ser por inspiração. Tal imagem lhe foi encomendada pelo governador Bernardo José  Lorena, para ser levada, a cavalo, nas festividades religiosas. Recebido pelo ajudante de ordens, coronel José Romão, este exclamou, recuando: - "Feio homem!" O escultor, indignado, ia retirar-se, quando o governador apareceu e tranquilizou-o, dizendo-lhe que desejava uma estátua maior do que  existente, e só ele, o Aleijadinho, seria capaz de fazê-la. Mas Antônio Francisco vingou-sede José Romão, fazendo o rosto do Santo à imagem daquele. Repetiu, assim, a vingança de Miguel Ângelo ao pintar o Cardeal Biaggio de Casana no inferno, e a de Leonardo Da Vinci, que retratou, em Judas, um seu desafeto. 
                 A arte de Aleijadinho revelou-se sublime também nas igrejas de N.S. do Carmo das Almas, de Vila Rica, na matriz e na capela de São João del Rei, nas matrizes de São João do Morro Grande e de Sabará, na capela de São Francisco, na de Mariana, nas Ermidas das fazendas de Serra negra, Tabocas e Jaguará, do referido termo de Sabará, e nos templos de Congonhas do Campo e Santa Luzia.  
                  Segundo alguns críticos, suas obras-primas devem ser procuradas em Congonhas do Campo e em São João del Rei, principalmente na magnífica planta da capela de São Francisco, naquela cidade, e do bem acabado trabalho de escultura e talha do respectivo frontispício. A imaginação popular, todavia, como sempre acontece com qualquer indivíduo que se manifesta admirável e famoso em qualquer gênero, exagera ao atribuir-lhe obras e passagens por outras terras. A perfeição e suas estátuas, em Matosinhos de Congonhas do Campo, era tal que algumas mulheres, que lá foram pela primeira vez, as cumprimentaram, tal como acontece com as uvas de Zêuxis, que os pássaros bicavam, jogando frutas reais. Mas apesar da sua habilidade e dos inúmeros trabalhos que executou, o Aleijadinho viveu quase sempre na miséria. O que ganhava, repartia fielmente com o escravo Maurício, falecido em Congonhas, quando seu amo esculpia os profetas e os Três Passos da Ceia, da Prisão e do Horto, no Santuário de Matosinhos. O escultor trabalhava a meia oitava de ouro por dia. E, ao concluir a obra da Capela do Carmo, recebeu seu salário em ouro falso...
                    Nos dias em que recebi o pagamento, era cercado por um bando de famintos e doentes de toda a sorte, que vinham de Ouro Fino, Ouro Pobre, Bom Sucesso, Mariana, dos arredores de Itacolomi, cada qual mais horripilante, furiosos, em busca das moedas de ouro. Então o Aleijadinho sentia-se rico, imensamente rico, mas só Deus sabia de que que riqueza. Para que lhe servia o ouro?  E atirava-o a mãos cheias, dizendo: "- Tomem  irmãos, todo esse ouro é de vocês! Que ele lhes mate a fome e suavize as dores e desgraças! 
                  E no dia em que aquele bando de mendigos, leprosos,dementes, cegos, estropiados, descobriu que as moedas eram falsas e voltaram-se todos contra o doador, enorme foi a mágoa do Aleijadinho, que chegou a chorar, não por perder o dinheiro, que para ele não tinha valor algum, mas por não poder aliviar a miséria daqueles párias. 
                 Vejam, agora, como Rodrigo José  Ferreira Bretas, mineiro, político, jornalista, o mais antigo biógrafo de Antônio Francisco Lisboa, lhe descreve os últimos dias, num substanciosos artigo, publicado em 1858, no "Correio Oficial de Minas" (números 169 a 170). 
                  "O Aleijadinho passa a residir numa casa contígua ao Santuário de N.S. do Carmo, em companhia do seu escravo Justino. Por ocasião dos Dias Santos de Natal, Justino retira-se para a rua do Alto da cruz, onde tinha a família, deixando ali seu mestre, que, durante muitos dias, por descuido do discípulo, não teve aquele tratamento e cuidados a que estava acostumado. Com este fato coincidiu o de perder quase inteiramente a vista, o nosso famoso escultor. 
                   Neste estado, recolhe-se à sua casa, sita na Rua Detrás de Antônio Dias (hoje demolida), da qual, depois de algum tempo, se mudou definitivamente, para a de sua nora, de nome Joana, parteira, que dele tratou, carinhosamente, até o seu falecimento, o qual teve lugar dois anos depois de seus últimos trabalhos de inspeção da Capela do Carmo, a 18 de novembro de 1814, na idade de 84 anos, e meses e 21 dias. 
                 Justino tinha pago apenas a seu mestre uma pequena parte do salario de um ano, que lhe pertencia, e, pois, até o fim de sua vida, a obsessão do mestre, nos seus solilóquios, era exigir do discípulo o que lhe era devido. Durante o tempo em que esteve entrevado, frequentes vezes apostrofava à Imagem do Senhor, que tinha em seu aposento e tantas vezes havia esculpido, pedindo-lhe que sobre ele  pusesse os seus Divinos pés...
                 É natural que, então, a vida de sua inteligência em grande parte consistisse na recordação do seu  brilhante passado de artista; ele se transportaria muitas vezes, em espírito, ao santuário de Matosinhos, para ler profecias no semblante no semblante dos inspiradores do Velho Testamento, cujas figuras tinham sido ali obradas por seu escopro. Nelas trabalhara durante dois anos. Em 1805, ficaram concluídos os quatro profetas do plano inferior, do parapeito do adro, à direita: Abdias e Amós, e, à esquerda, Naum e Habacuc. Em 1810, terminaria Jonas, Daniel, Oséias, Joel, Jeremias, Isaías, Baruch e Ezequiel. Ignora-se o motivo porque excluíra da obra os demais profetas: Elias, Eliseu, Miqueias, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. 
                Durante quase dois anos, horrivelmente chegado, o Aleijadinho jazeu sobre um estrado (tês tábuas sobre toros ou cepos de pau, pouco acima do chão).
                - Levem-me a São Francisco de Assis! - pediu aos escravos, quando se sentiu nas últimas. 
                 Meteram-no no estrado e depuseram-no nas lages úmidas da sacristia. 
                 - Aqui não! Ponham-me diante do altar-mor! - foi seu derradeiro desejo. 
                 Ali o deixaram, serrando as portas. Madrugada alta, o velho sacristão de São Francisco veio abrir a capela para a missa. Quase desfaleceu com o cheiro insuportável que asfixiava aquele interior que, de comum, o incenso perfumava em inebriantes exalações. E ali perto, inerte, deparara o corpo do Aleijadinho, repugnante e medonho, com as feições decompostas. A boca, congestionada, entreabria-se num sorriso sinistro, meio trágico, meio de escárnio, para o mundo que ficava em redor, com as suas incuráveis deformidades. 
                 O Artista estava morto. A massa informe de seu corpo de Lázaro entrava em plena decomposição. Sozinho, nas lages frias da nave, ele gozara toda a delícia de uma noite de núpcias, sob o pálio palpitante de sua obra imortal. 
                 Assim se findou aquele que, por suas obras de artista distinto, tanto havia honrado sua Pátria. Tanta miséria ousando aliar-se a tanto gênio e poesia! 
                 Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho de Vila Rica, acha-se sepultado na matriz de Antônio Dias, em Ouro Preto. Descansa numa sepultura contígua e fronteira ao altar da Senhora da Boa Morte, cuja festa, pouco antes, tinha sido juiz. 

                  

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